Liberdade e conceito
A chuva caía havia três semanas seguidas. Muito frio e
gelo pelas ruas tomadas de carros e gentes, que em plena expectativa de um
Natal que se aproximava; mesmo sob o fantasma da recessão provocada por uma
moeda única que começava a agonizar.
Mas estavam todos, inclusive os desvalidos, vivendo e se
entregando à rotina militaresca do único país europeu que não dava ares de
entrar em crise. Ao contrário, a Alemanha era o único país (e guardadas as
devidas proporções, a França) capaz de dar a sua contribuição para o resto das
combalidas nações do velho continente.
Estrangeiro para os que ficaram no Brasil, auslander para
os conterrâneos de Marx e alienígena para si mesmo, ele aproveitava os momentos
de solidão (que eram muitos) para andar pelas largas calçadas, sem destino.
Olhando o frio e sonhando com a chance de só voltar a sabê-lo pelo noticiário.
Suas caminhadas, nas manhãs de sábado invariavelmente
acabavam ou tinham como itinerário o centro nervoso da cidade, onde ficava a
mais charmosa padaria que conhecia. Além do lugar ter como funcionária uma
simpática francesa recém chegada, que demonstrou contagiosa e intensa
curiosidade sobre a sua história quando soube que ele era brasileiro. Isso tudo
o atraía.
Para descobrir sempre um pouco mais sobre a cidade
estrangeira e também evitar a rotina volta e meia fazia um caminho diferente.
Desta feita optou por passar pela praça onde reuniam-se diariamente drogados,
moradores de rua e excluídos sociais. Gente que tinha mais do que necessidade
como motivo para estar ali, já que o governo os supria de tudo o que
precisavam, inclusive drogas. Para tal, no entanto, estes deviam, como todo o
cidadão residente atender regras básicas de convivência. Entre elas, não
abordar pessoas que eventualmente circulassem no local.
Quando atravessava a praça, uma mulher muito magra e
debilitada interrompeu o seu caminho. Não se sentiu acuado ou com medo, mas
surpreso, por já conhecer bem as regras do país onde quase tudo é proibido.
A mulher, de aproximadamente 25 anos, era muito bonita e seus
traços, mesmo distorcidos pelo álcool e pelas drogas, denunciavam a sua
nacionalidade alemã. E foi em alemão que a jovem lhe fez um pedido: o qual ele
não prestou atenção.
Decidido a livrar-se do incômodo e seguir o seu caminho
solitário, disse à jovem, num alemão claro, que não falava o seu idioma.
Mentia, sabia o suficiente, mas era a forma mais prática de evitar o estorvo. Antes
que conseguisse seguir o seu caminho, a mulher o atalhou novamente, agora num
inglês impecável.
— Não tem problema. Podemos conversar em inglês. Você
fala inglês?
— Também não. Respondeu, mentindo novamente.
— Francês, espanhol?
A pressa e o incômodo foram imediatamente substituídos pela
curiosidade. Num inglês claudicante, perguntou:
— Você fala todos estes idiomas?
— Sim: respondeu a jovem. E continuou: —Tenho viajado por
alguns países. Falo também polaco, mas não é muito bom. É uma língua difícil.
— Você no meu país seria professora de línguas e, com
certeza invejada por muitas mulheres. Você é bem bonita. Por que você está na
rua?
— Me faz bem. Ser alemã é bem difícil (apesar de achar
melhor do que ser polonesa): nossas leis são muito rígidas e o meu povo não ri.
Não se emociona. Têm medo de sentir, de ser frágeis. Vivi na Espanha e na França.
Mais na Espanha. Os latinos são emoção pura. Meu sonho é ir para a América do
Sul. Conhecer a Argentina, o Chile e principalmente o Brasil. Quero ser do
mundo. Mas de um mundo que trago dentro de mim. Não este que me dizem ser o
real.
— Eu sou brasileiro: disse o homem, agora já sentado e
adorando a conversa. A confissão de sua limitação e a necessidade de se definir
geograficamente, o fez sentir-se triste e menor do que a mulher. Entre os dois
(pensou) era ele o que mais tinha nada.
— Que lindo. Ainda vou pra lá. E quando for eu te acho.
Ele riu. Ela ia ficando cada vez mais bonita. De repente
lembrou que ela o havia parado e perguntou:
— O que você queria de fato?
— Uma grana para comer um donuts: cinquenta cents.
Ele enfiou a mão no bolso e tirou duas notas de Euro. Uma
de cem e uma de cinquenta. Olhou para a jovem, que agora sorria e lhe parecia
familiar. Guardou a nota de cinquenta e estendeu a ela a de cem.
A menina ficou ainda por um tempo sem entender. Não tinha
coragem de pegar a nota. Apenas olhava par o estranho homem, que sorria.
Ele insistiu e disse:
— Essa é a minha colaboração para que você realize o seu
sonho de ir para a América do Sul.
Ela pegou a nota e ficou parada um tempo observando-o se
afastar em direção ao centro.
Após esse dia ele nunca mais fez outro caminho. Sempre
passava pela praça, querendo, sem saber ao certo o porquê, ver aquela estranha
e bela mulher novamente. Nunca mais a viu.
No entanto, o momento ficou tatuado na sua alma e até
hoje acredita que jamais pagou tão pouco por uma aula de liberdade. Isso sem
contar a quantidade de solidão que aquela criatura conseguiu arrancar do seu
coração com tão pouco esforço.
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