segunda-feira, 23 de janeiro de 2012


Ditinho

Ditinho atravessou a pinguela entre o bairro Salgado Filho e a favela Esperança. Onde morava, desde que pisou no mundo e ainda se chamava Oldair Nascimento da Silva: onze anos, franzino e pobre.
Morava com a mãe, os oito irmãos e os dois cachorros, Bolinha e Tigre.
Coisa diferente no ar. A nítida sensação de que algo de novo acontecia lhe correu a espinha, num arrepio. Não sabia ao certo se bom ou ruim o que se anunciava. Era estranho, fugaz, mágico.
E foi mágica o que viu. Assim que pisou na viela de terra, que beirava o Ribeirão da Desova, as primeiras manchas negras de asfalto começaram a lhe brotar sob os pés, diante dos olhos, tomando conta das ruas adjacentes e pintando de negro cada beco. Ao mesmo tempo calçadas, dos mais variados tipos de lajotas, cerâmicas e cimentos coloridos e decorados formavam-se, nasciam como plantas, como se num filme em alta velocidade.
Seguiu, com os olhos e com o corpo, a agradável transformação. Parecia normal, aceitável. Não sentia medo ou surpresa, mas prazer, felicidade, excitação resumiam a sensação.
O fenômeno avançou favela adentro, transformando casas, alargando ruas, fazendo surgir árvores e flores onde antes só se via sujeira e esgotos a céu aberto.
Diante de sua casa a coisa se intensificou. Portas e janelas adquiriram um colorido de contos de fadas. Paredes se alargavam: um andar a mais surgiu do nada e um jardim florido emoldurava agora a entrada, até então de terra batida e negra.
Entrou. Do lado de dentro da casa, mais surpresa. Sua mãe, sempre tísica e banguela, exibia agora um ar saudável e lhe dirigia um sorriso contagiante: seus olhos brilhavam. O pai, sumido há anos, almoçava com tranqüilidade. Tinha ao lado do prato uma taça de vinho pela metade e vestia um uniforme com a logo da Vale do Rio Doce no bolso.
Kellem Sâmara, sua irmã mais nova, com um vestido azul marinho impecável, beijava sua mãe, e se despedia rumo à escola. No ombro, uma lancheira cor-de-rosa com o lanche para o intervalo.
Sua mãe lhe veio dar um beijo. Seu pai, sorrindo, prometeu, após uma soneca, ir com ele ao campinho para empinar a pipa nova que lhe comprara.
Era felicidade demais. Estava tudo perfeito, em ordem. Melhor do que jamais sonhara.
A felicidade e a excitação lhe impediam de perceber que ele também estava de uniforme escolar, e carregava uma pasta com material nos braços.
Era demais. Queria aproveitar cada minuto da nova realidade. Acordara de um pesadelo e sua vida era agora o que sempre quis que fosse. O que sempre acreditou ser o ideal. O que sempre sonhou. Uma família, uma casa bonita, uma escola e pessoas sadias a sua volta.
Foi à janela. Olhou para o dia, para o sol, que brilhava. Um dia lindo, um belo bairro, um jardim em sua própria casa. Não tinha mais dúvida: era deus. Só podia ser deus. O deus que sua mãe, evangélica, sempre lhe disse que viria para lhes tirar da miséria. Deus veio, e, com ele, a felicidade plena.
Virou o rosto par o sol, fechou os olhos e sentiu o calor aconchegante. Mesmo de pálpebras cerradas podia ver a luz intensa do astro rei. Essa começou a aumentar. Abriu os olhos. A luz aumentando: ficando cada vez mais brilhante. Do céu, uma mão desceu em sua direção, se agigantando diante dos olhos. Crescia e crescia. Cada vez mais perto. Era deus, pensou.

O que sentiu foi algo indescritível. Teve a impressão de um grande baque sobre o rosto. Uma força imensa acabara de tocar-lhe, no entanto não sentia dor alguma. Teve a impressão de ter desmaiado, mas percebeu que estava acordado. Agora estava no chão, deitado de lado sobre o seu braço direito. Seu corpo estava encolhido como se fosse um feto. Abriu os olhos. Sentiu algo quente lhe escorrendo da boca e do nariz: era vermelho.
Viu uma mão se afastando, um coturno, uma voz grave que lhe parecia ecoar dentro da cabeça. Era uma pergunta:
— Passou o barato da pedra, ladrãozinho filho da puta?

Nenhum comentário:

Postar um comentário